sexta-feira, 8 de junho de 2018

O dia em que eu coxeei durante 32 kms em Estocolmo.



Na linha de partida estavam 30.000 atletas. Eu era um deles. Um total de 102 nações representadas.
Mais que fazer uma corrida, parecia que íamos para a guerra. Olhares concentrados e aguerridos. Músculos tensos e respiração curta. Um silêncio de cortar a respiração.

Quando faltavam três minutos para o tiro de partida, uma qualquer diva sueca dirigiu-se a um palanque no alto de uma ponte, e cantou o hino da Suécia. Ao meu lado havia pessoas a chorar. Quando o hino terminou, 5 aviões da força aérea em formação triangular, passaram rente às nossas cabeças em alta velocidade, deixando atrás de si um rasto de fumo branco.

Foi então que se ouviu um estridente “PUM”!!
Estava dada a ordem para atacar os 42 quilómetros e 195 metros da Maratona de Estocolmo.


O primeiro quilómetro de uma maratona é tão incaracterístico que se torna quase cómico. Milhares de pessoas com um ritmo diferente a tentar conquistar o seu espaço. Uns tentam passar pelo meio, outros pelos lados. Não há como evitar encontrões ou algumas rasteiras. Só posso descrever o processo com uma palavra: caos.

Mas após 5 ou 10 minutos, como que por força divina, o espaço aparece e o foco na corrida começa.

Naquele sábado, 2 de Junho de 2018, eu ainda não sabia bem no que me estava a meter. Ou melhor, saber sabia, mas não podia prever as dificuldades com que me ia deparar.
A minha confiança estava em alta. Apenas dois meses antes, a 1 de Abril de 2018, corri uma maratona na Grécia com o fantástico tempo de 3 horas e 33 minutos.

Desta vez o meu objetivo eram as 3 horas e 15 minutos. Para isso preparei-me com afinco durante 8 semanas. Por exemplo, duas semanas antes da maratona em Estocolmo, corri a meia maratona em Teerão com o tempo de 1 hora e 37 minutos. Uma boa performance tendo em conta que a capital do Irão se situa a 1500 metros de altitude.
No entanto, durante essas 8 semanas, uma pequena lesão na virilha começou a atormentar-me… de repente vinha e depois ia… depois voltava… os sintomas eram basicamente uma dor excruciante e sensação de fraqueza na perna. Alguns dias antes da corrida não havia sinais da lesão, por isso estava motivado e confiante para o meu objetivo.

Mas voltando à corrida… após o tal primeiro quilómetro confuso, pus os olhos na estrada e concentrei-me na minha missão. Estava um dia espetacular numa cidade espetacular!

Aconselho toda a gente a visitar Estocolmo, em particular no verão quando está menos frio. A organização marcou a maratona para o meio dia com medo do possível frio matinal que por vezes se faz sentir na Escandinávia. Nos dias anteriores à corrida, ouvi vários relatos da mítica corrida de 2012 em que as temperaturas chegaram aos 4 graus! Mas as previsões saíram ao contrário e por volta do meio dia os termómetros marcavam 30 graus!

Mas nem isso me ia parar. Sou português do sul da Europa, não tenho medo do calor e com a hidratação certa não vou ter problemas… pensava eu!
Portanto tudo estava bem encaminhado. Tinha o equipamento certo, banda sonora perfeita nos ouvidos e estava motivado! Era só correr e cumprir o objetivo!

Fiz os primeiros 5 kms em 23 minutos, ou seja, uma cadência de 4 mins e 35 segundos por quilometro. Tudo a correr bem.

Mas foi então que aconteceu… o fado que de certa forma eu já previa… ao km 8, a lesão na virilha atacou mais forte que nunca… e apesar de ter tomado comprimidos para as dores, a sensação de dor era quase insuportável. Continuei durante uns 2 kms a ver se passava. Tinha dores, mas o corpo estava quente e conseguia correr.
Mas não dava. Tinha que parar e tomar uma decisão. Sentei-me na estrada e pus as mãos na cabeça.

Faltavam 32 kms e não conseguia mais.

O natural era desistir.
Mas não podia. Quando desistimos uma vez torna-se um hábito. E não podia dizer ao meu filho que vem a caminho que tinha desistido a meio de uma maratona!

Por isso decidi continuar. A coxear. A chorar. Num esforço brutal como nunca antes tinha feito na vida. Fazendo cada metro com muito sacrifício. Devido à forma como corria, novas dores em novos locais começaram a aparecer como os joelhos e músculos das pernas.
Com o calor e o sofrimento, comecei a sentir devaneios de loucura. A música nos meus ouvidos parecia mais lenta e enrolada. O controlo emocional estava a escapar-se. E como não? Lembro-me de passar no Km 30 e já não tinha nada para dar… como ia fazer os 12 kms e 195 metros que faltavam?


Nas estações de abastecimento de água, sedento e desidratado, atirava-me contra as bancas e apanhava dois ou três copos que continham o precioso líquido. Na mesma altura, dezenas de corredores tentavam ocupar o mesmo espaço e íamos uns contra os outros, roçando os braços e pernas molhadas uns nos outros, como se estivéssemos numa qualquer orgia ou algo semelhante. Durante o percurso, havia uma espécie de mangueiras a jorrar água, com o objetivo de refrescar os participantes. Tenho a vaga memória, de passar nestes duches e sentir a água gelada a bater na minha pele quente e a dizer “acorda, acorda, vamos para a frente!!”.

Mas com tantas adversidades eu não era o único a sofrer. Havia pessoas no chão a ser assistidas por médicos. Outros foram para o hospital devido a lesões ou desidratação. Muitos desistiram a meio.

Mas depois via idosos a correr com um enorme sofrimento estampado no rosto. E via também cegos e pessoas em cadeira de rodas. E aí sentia-me inspirado e com força para continuar.

Ao final de 4 horas e 39 minutos, entrei no Estádio olímpico de Estocolmo e completei a maratona! 

Quando passei a linha da meta, o meu nome e a bandeira de Portugal apareceram no placar eletrónico. Acabei nos 9000 primeiros e recebi uma medalha. Foi um feito simplesmente épico e que nunca mais esquecerei. Apesar de todas as contrariedades, a felicidade de completar mais uma maratona justificou o sacrifício!
E assim foi o dia em que coxeei durante 32 kms em Estocolmo.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Nepal 2018 - Estamos em casa.


Mais uma vez consegui ver o Monte Evereste antes de aterrar em Kathmandu.
Olhar para os Himalaias, através da janela do avião, e tentar identificar as diferentes montanhas da cordilheira mais alta do mundo, já se tornou um dos meus passatempos preferidos.

No meio de tantos picos nevados, descobrir o Evereste é fácil. Para além de ser a montanha mais alta do mundo, a sua proximidade com Lothse e o vale côncavo que se forma entre ambos, fazem desta zona um alvo fácil de identificar. E a partir daí, é olhar para lados, e descobrir outros picos famosos: Nuptse, Cho Oyu, Makalu ou Kangchenjunga. Arrepia-me ver estas montanhas ao vivo. Locais de aventuras, glória e tragédia.  

No passado dia 17 de Maio de 2018, viajei com a Ghazal para Kathmandu. Foi a primeira viagem ao Nepal do nosso filhote! Ainda na barriga da mãe, mas já com 22 semanas!


Para mim, no entanto, foi a 13ª vez que aterrei em Kathmandu nos últimos 3 anos, contando claro, com uma vez que cheguei a pé.
Sempre que o avião toca a pista do aeroporto de Tribhuvan, uma sensação de euforia percorre-me a espinha. 
Estamos em casa.
O objetivo principal da nossa viagem é continuar a acompanhar os projetos solidários em que estamos envolvidos. O nosso movimento Dreams of Kathmandu, está mais ativo que nunca e este ano de 2018, planeamos distribuir cerca de 15.000 € nas diversas áreas em que estamos envolvidos. 
Não deixem de visitar todos os pormenores em https://dreamsofkathmandu.blogspot.com/
Dreams of Kathmandu é a nossa visão de apoio sustentável ao Nepal e o motivo para continuarmos a visitar o país até ao fim das nossas vidas. Não queremos virar as costas aos nossos amigos. Queremos vê-los crescer e crescer com eles. Para nós, Pedro e Ghazal, é também um legado que queremos deixar aos nossos descendentes. 
Dreams of Kathmandu é olhar as pessoas olhos nos olhos e com amizade. É não ter medo de fazer e cumprir promessas. É aplicar 100% dos donativos recolhidos, sempre com transparência, honestidade e detalhe. Não somos nenhuma ONG nem temos parcerias institucionais. Tudo o que fazemos é pelo bem-estar das pessoas. A nossa dedicação é incondicional e a verdade não é negociável.
Ficamos instalados no Hotel Dwarikas, o nosso "ninho" no Nepal. 
Sempre que entro neste local, não consigo afastar do meu espírito, uma sensação de humildade e estupefação. É como se estivesse a entrar noutra dimensão, onde o espaço e o tempo têm vontade própria. 
Desde logo somos recebidos de forma calorosa pelo staff que nos oferece um khada, o cachecol nepalês, símbolo de boas vindas. No Hotel Dwarikas o ar cheira a flores, velas e gengibre. As paredes, janelas e o chão são feitos de tijolo vermelho, madeiras negras e granitos. Há arvores, arbustos e plantas de várias espécies, muitas enroladas em estátuas e edifícios do hotel, como se estivéssemos numa cidade perdida da América do Sul. Há lianas, macacos e pássaros. Há água fresca a jorrar de fontes e nenúfares verde esmeralda. Há tributos a várias religiões na forma de símbolos, janelas ou altares, principalmente Budistas e Hindus. Hóspedes de várias nacionalidades convivem de forma calma e pacífica. Os empregados sorriem e vestem trajes das várias regiões do Nepal. Há reuniões de embaixadores e agentes de trekking vêm ao hotel encontrar-se com clientes. Sacos gigantes de várias cores, da marca North Face, acumulam-se na entrada, provavelmente acabados de chegar de uma expedição dos Himalaias.






Numa mesa do canto, quase impercetível, Sangita Shreshta bebe um chá e fuma um cigarro Karelia slim de menthol.
Ela é a arquiteta e visionária deste espaço. Cruelmente bela, elegante e sempre vestida de acordo com as cores ditadas pelos astros, ela coordena a orquestra do seu império familiar. Um império assente em princípios e valores, mais que nos prédios que a rodeiam. À sua frente está um isqueiro, um telefone portátil e alguns papeis para assinar. À volta da mesa, empregados de vários departamentos do hotel, fazem fila de forma reverente à espera da sua vez para falar. Ninguém se atreve a interromper. Um misto de medo e respeito impera no ar. Sangita é a Cleópatra num país onde os homens ainda dominam.




Quando nos vê, levanta-se e trata-nos com carinho e afeto. Para mim é uma grande lição lidar com uma pessoa que tanto conquistou, mas sabe manter a sua humildade. Em breve juntam-se a nós, a sua mãe, Ambica Shreshta e o filho mais velho, o meu bom amigo Vijay Einhaus. Mais duas gerações que marcam presença nos corredores do hotel. Nos próximos dias vamos rir, comer e conviver. 
Estamos em casa.
Sempre que vamos ao Nepal não temos mãos a medir. Desta vez deveríamos ter algum cuidado devido à gravidez da Ghazal, mas até isso foi impossível. Desde manhã à noite desdobramo-nos em encontros, visitas, reuniões ou compras de bens para os nossos projetos.
A nossa rotina diária começa com o pequeno almoço. Depois voltamos ao quarto e enchemos a mochila com aquilo que vamos precisar para o resto do dia: água, comida, casacos de chuva, carteira e máquina fotográfica. 
Kathmandu é uma cidade dura. Os dias são longos e cansativos. Há muito pó e humidade no ar. A pele e o cabelo rapidamente ficam oleosos. O frio alterna com o calor. O trânsito é caótico. As estradas estão cheias de buracos. As casas de banho são um simples buraco no chão e cheiram muito mal. Há cães e vacas por todo o lado.
Apesar de todos estes obstáculos, próprios de um país do terceiro mundo, a experiência fala mais alto e sabemos movimentar-nos. Obviamente que no final do dia estamos estoirados, mas sempre felizes e com o sentimento de missão cumprida. Temos amigos por todo o lado desde Bakhtapur até Patan, Jorpati, Thaiba, Thamel ou Changun. Toda a gente nos cumprimenta com um sorriso. Conhecemos taxistas de confiança, bons sítios para comer e as melhores estradas para circular. Em Kathmandu até já tenho o meu barbeiro, médico ou local onde troco dinheiro com taxas mais favoráveis. 
Estamos em casa.
Passamos os dias a visitar os nossos projetos.
Vamos a Bistagaon e passamos tempo com a Babita, Bablu, Ruska, o General e o Sameer. As crianças estão tão grandes! Estamos a ajudar algumas famílias na construção de casas permanentes e a pagar bolsas de estudo a crianças.






Visitamos os nossos amigos do Campo Esperança. O campo já não existe, mas as crianças continuam a ir à escola em Kathmandu ou nas vilas em Tatopani. Este ano estamos a pagar bolsas de estudo, despesas médicas e alimentação.






Visitamos as vilas na região de Tatopani onde as casas do projeto Our Dream Village já começaram a ser construídas! Com a caminhada que fiz pela India, estamos a pagar uma destas casas e através de Fundação Vox Populi vamos financiar mais 12.








Visitamos as 14 crianças que estamos a apoiar na Sharadas Shelter em Patan. Em 2018 ajudámos a arranjar camas, colchões, sapatos, mochilas e uniformes escolares.








Vamos a Thaiba e visitamos as 7 crianças orfãs que o Tej e a sua esposa acolhem em casa. Estamos a ajudar com material e escolar e mobília nova como armários, mesas e cadeiras.





E por fim também ajudamos os funcionários do Grupo Dwarikas. O staff do grupo são como família para nós e muitos precisam de um “empurrão”, principalmente no que toca à construção da sua habitação.



Mais uma vez, tudo está relatado no site https://dreamsofkathmandu.blogspot.com/
Registem-se recebam as novidades!
Foi mais uma grande aventura no Nepal e já estamos com saudades. Voltamos de coração cheio e com a certeza de estar no bom caminho. Para o ano estaremos de volta, mas mantemos o contacto semanal, muitas vezes diário, com os nossos amigos e projetos. Na minha cabeça, novas aventuras também se vão formando na área do trekking. Fui mordido pelo bicho do montanhismo! A Ghazal também gostava de visitar o sul do país, nomeadamente o parque natural de Chitwan onde há tigres, elefantes e rinocerontes. Tanto por fazer neste país plantado à beira dos Himalaias. You will not change Nepal, but Nepal will change you!

P.S. No Nepal para se levar uma injeção é só ir a uma farmácia e o processo desenrola-se ali mesmo a céu aberto!!

Estamos em casa.